Eu adoro charges. Elas são multifuncionais.
Ao mesmo tempo em que são divertidas, também escancaram algum traço da nossa natureza humana ou da nossa sociedade e, assim, também nos fazem refletir.
Essa daqui, do cartunista Kevin Kallaugher, estampou a capa da revista The Economist em 1989.
Segundo a inscrição no topo, ela retrata “apenas um dia normal na instituição financeira mais importante do país…”.
Nesse “dia normal”, um pânico é desencadeado por uma confusão fonética de excel (“sobressair-se”, em uma tradução livre) com sell (“vender”), e seguido por uma explosão de euforia também desencadeada por outro mal-entendido, dessa vez entre bye (“tchau”) e buy (“comprar”). E, quando chega no fim, começa tudo de novo.
Ou seja, retrata os agentes de mercado agindo quase como crianças brincando de telefone sem fio (ou estragado). E quem reparar nos detalhes, verá que estão todos bem-vestidos e são pessoas experientes.
Cabelo ali se encontra quase só sobre as cabeças femininas.
Mas André, o mercado não é racional? E os agentes não são normalmente pessoas muito bem formadas, informadas e cultas?
Em geral, sim, algumas das mentes mais inteligentes das nossas sociedades trabalham nos mercados financeiros, e isso não é só no Brasil.
Gente formada nas melhores universidades e nos cursos mais cultuados (engenharias, economia, administração) colocam diariamente seus conhecimentos à disposição do mercado.
- Aqui, uma curiosidade que já observei: o mercado financeiro parece ter bem mais engenheiros do que economistas e administradores.
Profissionais com pós-graduações e certificações recém começadas e outros com bastante experiência na bagagem também.
Isso por si só já deveria fazer do mercado, entendido como o conjunto desses agentes, um ambiente no qual reina a racionalidade, certo?
Mais ou menos. Acontece que essas mesmas pessoas também são apenas… pessoas! E, como tais, estão sujeitas a todas as emoções que você e eu também sentimos: alegria, tristeza, preocupação, confiança, raiva, medo, euforia e pânico. E muitas outras.
Imagine um humano da época das cavernas sendo tirado diretamente do filme A Guerra do Fogo, e colocado em frente a uma tela de cotações para tomar decisões de compra e venda de ações.
É isso que os agentes de mercado também são. É isso que todos nós somos.
Não muito tempo antes desta charge, em 1987, o mercado norte-americano havia passado por uma forte chacoalhada. Mais precisamente, em 19 de outubro de 1987, no dia que posteriormente ficou conhecido mundialmente como a black monday.
Nessa fatídica segunda-feira, o índice Dow Jones fechou o dia com queda de 22,6%. O ano de 1987 vinha muito bem, sendo que o mesmo índice havia acumulado alta de 44% até agosto, quando atingiu seu pico no ano.
Várias foram as tentativas de explicar o que aconteceu naquele dia e por que o mercado se comportou daquele jeito.
As suspeitas pairam até hoje sobre a desaceleração do crescimento da economia, o alto nível de alavancagem das empresas, o temor de um conflito no Oriente Médio ou a atuação de programas de negociação computadorizados (que eram novidade na época)…
…no entanto, tudo isso já estava presente também no pregão anterior, portanto, não justificava uma queda de magnitude tão grande em apenas 1 dia.
Para completar, quando a charge de Kallaugher foi publicada, o Dow Jones renovava sua máxima, completando o ciclo que ela caricaturizava.
Isso tudo, não pode ser fruto de decisões racionais de agentes que formam uma expectativa de valor justo para as ações e agem de acordo com essa conclusão. Valores justos de ações não mudam tanto em tão pouco tempo.
O que Kallaugher escancarou magistralmente aqui foi o componente emocional dos mercados financeiros. Os sentimentos comportam-se como um pêndulo invisível que oscila de um lado para o outro, entre o otimismo e o pessimismo.
É claro que ele exagerou, essa oscilação do pêndulo invisível entre pânico e euforia dificilmente ocorre dentro de um dia.
A influência das emoções sobre os mercados é forte sim, e isso desde muito antes da pandemia ou da black monday.
Vieses do investidor
Por muito tempo, o mundo acreditou na hipótese da racionalidade perfeita, ou seja, de que homo sapiens são seres que tomam decisões puramente racionais em ambiente de incerteza, analisando riscos e benefícios de maneira não-enviesada.
Ainda na década de 50, Herbert Simon desafiou essa visão e propôs o conceito de racionalidade limitada.
No entanto, somente bem mais tarde foi que o psicólogo Daniel Kahneman questionou a hipótese da racionalidade em si, demonstrando, através de dezenas de experimentos, a presença de uma forma de irracionalidade presente nos processos de julgamento de homo sapiens, causada por: heurísticas, vieses cognitivos e emocionais.
Segundo ele, as pessoas estão constantemente misturando racionalidade com intuição quando avaliam alternativas.
Em 2002, ele ganhou o Prêmio Nobel de Economia por sua obra. Justiça seja feita (e ele a fez em seu discurso), o nome de seu fiel companheiro de pesquisa Amos Tversky, falecido em 1996, merece ser mencionado tanto quanto o do próprio Kahneman.
Investimentos e a inteligência emocional
Diz-se que o melhor investidor é aquele que consegue domar suas emoções. De fato, para mim está bastante claro que inteligência emocional é mais importante na geração de bons resultados em investimentos do que inteligência racional.
Mas como podemos nos blindar dos efeitos negativos que as emoções podem ter em nossas decisões de investimento?
Sem me alongar mais muito por aqui, vou tentar resumir:
- Tenha consciência de que as emoções existem e têm efeito sobre o mercado. Acredito que essa leitura de hoje tenha abordado bem esse ponto;
- Tenha consciência de que você também é um ser emocional, e que suas decisões também são afetadas pelas suas emoções;
- Tenha consciência de que as emoções do mercado podem contaminar você. Por isso, procure limitar sua exposição a informações de mercado, da mesma forma que pais limitam o tempo de tela de seus filhos;
- E, para evitar ainda mais essa contaminação, desenhe bem sua estratégia de investimentos em um momento no qual você está calmo, preferencialmente com a ajuda de um profissional, e faça um juramento de fidelidade a ela. Pois, uma coisa da qual eu tenho certeza é que as suas emoções vão frequentemente lhe dizer para fazer exatamente o contrário do que deve ser feito.
Seguindo uma estratégia racionalmente bem desenhada, você comprará na baixa e venderá na alta; seguindo suas emoções, você fará o contrário – em resumo: perderá dinheiro por conta das emoções...
Crises e os vieses do investidor
Recentemente, vivemos uma crise que há algumas gerações não vivíamos: uma pandemia mundial.
Em primeiro lugar, nossas profundas condolências a todos que perderam amigos ou familiares nessa tragédia…
Como na black monday, no começo da pandemia, pudemos observar uma reação bastante intensa dos mercados no mundo inteiro.
Como eu comentei, frequentemente o mercado reage de maneira emocional a algum estímulo ou fato novo que aparece.
No entanto, ele também não é totalmente só emoção.
Na medida do possível, o mercado também tenta sempre manter a sua razão ligada e ativa, de maneira que as suas reações acabam sendo um misto de razão com emoção.
A reação do mercado, em março de 2020, certamente não pode ser atribuída somente ao efeito emocional de apreensão e medo que a pandemia causou: os estragos que a COVID trouxe para as economias no mundo todo, foram bem reais.
As medidas de lockdown adotadas em diversos países ocasionaram retração econômica no mundo inteiro.
Retração econômica provoca quedas nos lucros e na geração de caixa das empresas, o que destrói o valor delas.
Nesse sentido, o mercado agiu, em parte, de maneira racional à destruição de riqueza provocada pela pandemia.
No entanto, certamente é correto afirmar que o componente emocional também esteve fortemente presente.
Afinal, após afundar quase 45% no início de 2020, nos últimos dias de dezembro daquele mesmo ano, o Ibovespa terminou de recuperar toda a queda sofrida e fechou o ano em alta.
Nenhum mercado racional se comporta assim. Os preços justos das empresas, nos quais agentes puramente racionais baseariam suas decisões de compra e venda, não mudam tão radicalmente assim ao longo de um ano.
Ou seja: surgiu um fato novo que representava alguma destruição de valor para as empresas listadas na bolsa, de forma que algum percentual de queda era racionalmente justificável.
- Mas aí, a emoção entrou junto em campo e borrifou gasolina na labareda, amplificando a reação para um nível bem além do racional. Os experientes, pós-graduados e sofisticados cavalheiros sucumbiram às emoções primárias de seus tatatatatatataravôs das cavernas que julgam tão mais primitivos.
– Peraí! Preços justos? Explica melhor essa aqui, André.
– Claro, com prazer!
Como calcular o preço justo de uma ação
Para cada ação de cada empresa listada na bolsa, é possível se calcular uma estimativa do que seria o seu preço justo, ou valor justo.
Quer dizer, um preço que reflita a perspectiva futura de geração de resultados e geração de caixa da empresa, e que também pondere todos os riscos aos quais essa empresa está exposta.
- Existem diversos métodos para se estimar esse valor justo: modelo de dividendos de Gordon, modelo de lucro residual, modelos de múltiplos justos, modelos de avaliação baseada nos ativos…
…e o mais completo deles, que é o modelo de fluxo de caixa descontado.
Basicamente, esse modelo parte de uma estimativa de fluxos de caixa que a empresa deve gerar de hoje em diante, e os traz a valor presente, descontando-os por uma taxa que reflita os riscos envolvidos na operação da empresa e nessa estimativa.
O valor justo é, portanto, o somatório desses fluxos de caixa futuros trazidos a valor presente.
Abaixo, segue uma esquematização de como essa conta funciona, para deixar mais claro:
Nesse exemplo hipotético, estamos no fim de 2019, calculando o valor justo de uma empresa que esperava-se que fosse gerar R$ 10 de caixa em 2020, e que, nos anos posteriores, essa geração de caixa crescesse 5% ao ano, indefinidamente.
A perpetuidade ali significa que, no cálculo do fluxo de caixa a valor presente, foi considerado que ela não deixaria de existir em 2024, e seguiria existindo, gerando fluxos de caixa dali em diante.
Um CPF tem vida finita, mas um CNPJ não, então, a premissa por trás da perpetuidade é a de que a empresa vai continuar existindo indefinidamente.
A uma taxa de desconto de 12%, essa empresa teria um valor justo aproximado de R$ 140.
Importante ressaltar aqui que, como estamos lidando com estimativas, a ordem de grandeza é mais importante do que valores exatos.
Valor justo de uma ação durante a crise
Agora suponha que a pandemia mude a perspectiva para essa mesma empresa, de maneira que, em 2020, ela tenha uma geração de caixa não mais positiva, e sim negativa, de -R$ 10.
E que, em 2021, ela ainda esteja sentindo os efeitos da pandemia, de maneira que sua geração de caixa ainda não retornou ao normal.
Se colocamos essas premissas para dentro desse modelo simplificado, vemos que o valor justo cai para cerca de R$ 120.
Ou seja, uma queda de aproximadamente 14% em relação ao valor sem pandemia.
Note que, aqui, estou tratando a pandemia como um evento temporário.
A partir de 2022, o mundo volta ao que era antes.
Queda do mercado financeiro
Com base nisso, é possível afirmar que uma queda racionalmente justificável em função da destruição de valor ocasionada por um evento temporário, como a pandemia que vivemos, era de 10-20%.
Se estressarmos um pouco mais as variáveis…
Talvez, aumentasse um pouco mais esses números, mas certamente não 45%.
Isso porque, sendo um efeito temporário, a pandemia não mexe com a perpetuidade das empresas.
E é ali que está a maior fatia do seu valor justo.
Nesse exemplo hipotético, a perpetuidade representava, antes da pandemia, algo como 78,5% do valor total da empresa (R$ 110/R$ 140).
Tendo feito já inúmeras avaliações por fluxo de caixa descontado ao longo da minha carreira no mercado financeiro, de empresas de diversos setores, posso afirmar que nem sempre esse percentual é tão elevado, mas quase sempre ele fica superior a 60%.
- Bom, agora que está explicado o que seria uma queda racionalmente justificada pela perda de valor decorrente de uma pandemia mundial, fica a pergunta: pois então, se os bem formados, bem informados e bem pagos agentes sabem disso, por que então o mercado, que nada mais é que o conjunto deles, ainda cai tanto a mais do que seria uma queda racionalmente justificável em eventos como esse?
Erros do investidor
Além do fato de ainda sermos os mesmos homo sapiens que não muitas gerações atrás caçavam mamutes e fugiam de tigres dente-de-sabre (na coluna da semana passada, fiz a referência ao filme A Guerra do Fogo), somos também seres sociais.
E, como tal, nos deixamos influenciar por estímulos externos, e pelo que outros da nossa espécie estão fazendo.
Ora, eu posso muito bem ter consciência que uma queda maior que 10-20% não seria justificável em uma situação como a que vivemos que, apesar de bastante devastadora, era previsivelmente temporária, em termos econômicos.
Portanto, não mexeria no fluxo de caixa de perpetuidade das empresas, que é o principal componente de seu valor intrínseco.
Mas e se, ao mesmo tempo, eu também sei que o meu coleguinha do lado está assustado, vai tomar decisões influenciado pelo medo que está sentindo, e as suas decisões podem fazer ações que eu possuo caírem mais do que isso?
Vou ficar parado assistindo isso acontecer?
Ou vou tentar vender essas ações antes, para daí recomprá-las mais barato depois?
A tentação para fazer isso é grande, eu sei. Na teoria, isso parece justificável. Olhando para trás e sabendo o que aconteceu depois, mais ainda.
O problema é só aquele detalhezinho chato, que é a tal da prática.
Na prática, quem tenta fazer isso, acaba cometendo diversos erros.
- O primeiro deles é recomprar cedo demais, e ainda amargar um bom pedaço da queda subsequente.
- O segundo é recomprar tarde demais, e acabar pagando mais caro do que foi o preço da venda. Ou seja, literalmente, vender na baixa e comprar na alta.
- Mas o erro mais importante e mais comum é o terceiro: fazer isso em ocasiões nas quais o mercado não atinge uma queda de mais de 40%.
Se eu vendo após uma queda de 10-20%, e o mercado voltar a subir, aí sim eu fiz o trade perfeito. Só que ao contrário.
Como o nosso amigo da charge acima, somos constantemente bombardeados por notícias que nos fazem crer que estamos à beira de um precipício.
Além das notícias, o próprio comportamento do mercado nos influencia também.
Quedas fortes nos deixam ainda mais preocupados.
Assim, influenciados por esse medo, acabamos agindo como um cachorro que foge da linguiça achando que é uma cobra.
Quem vende após uma queda de 10-20% achando que vem uma de 40%, frequentemente vai voltar com o rabo entre as pernas pagando mais caro.
As poucas vezes em que essas vendas vão protege-lo de quedas maiores não vão compensar as várias vezes em que o mercado vai se recuperar após elas.
Investir corretamente é um processo monótono, eu sei.
Ficar agindo só com a razão é chato, fala sério.
Mas a verdade é essa: se você sente uma montanha russa de emoções quando toma decisões de investimento e observa os resultados delas dia a dia, você provavelmente está fazendo errado e vai perder dinheiro ao longo do tempo.
A escolha é sua.
Um abraço e uma monótona semana a você!
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